sábado, 2 de agosto de 2008

No silêncio da noite


NO SILÊNCIO DA NOITE (In a lonely place), Nicholas Ray


Negro. Negro é o filme, negro é o passado de Dixon Steele que, ao invés de esconder algo perverso, guarda desejos, desejos que foram tragados pelo tempo. Não que No silêncio da noite mostre que Dix chegara cheio de sonhos e esperanças ao mundo do cinema (mundo? mundo.), mas a melancolia dos ensejos frustrados da personagem estão estampados em alto-relevo na expressão quase majestosa de Humphrey Bogart. Mas como culpar um trabalhador (e se eu digo trabalhador e não escritor porque a ótica que o filme propõe não se limita à old hollywood) que é vítima do próprio sistema, que desmotiva e substitui? Se os velhos são colocados de lado para que os motores da fábrica (de filmes) recebem óleo novo, como persistir na idéia de que “um dia farei algo bom”? Numa luta constante contra o tempo, Dix Steele está apanhando, e, com o passar dos dias, vagarosamente, se torna um fracassado.

E tem esse homem, Dixon Steele, que é um escritor de cinema que se sente constantemente fracassado, e aí ele recebe a proposta de fazer uma adaptação de um livro para o cinema, um livro que ele acha muito ruim e que aumenta sua sensação de desconforto com o sistema que o controla. E aí...

Clara. Clara é a mulher, claro é anjo, que dá falta de contraste (porque ela é clara, iluminada demais!) toma a forma do próprio contraste, estabelecendo-se como o extremo oposto de Dix. Laurel Gray é suave, tão suave como uma jovem mulher sonhadora pode ser. Por muitas vezes é inexpressiva, mas quem precisa de expressão em um filme onde ela está diretamente ligada ao fracasso, à melancolia? Não, eu vou ficar com a maciez da jovem Gray (e os holofotes ficam sobre ela também, e todo mundo percebe!). A conexão entre o preto e o branco é imediata. Laurel e Dix se apaixonam e se desejam e ela se transforma em sua musa inspiradora e finalmente resolve deixar a desmotivação para trás e começa a se dedicar ao trabalho de (trabalhar; viver) escrever.

Assassinato! Dix levou a jovem e inocente Mildred Atkinson para sua casa, porque ele queria que ela contasse pra ele a história do livro, porque ele tava tão chateado mas tão chateado com a idéia de adaptar algo tão ruim, que nem queria se dar ao trabalho de ler. Mas quando ela voltava de taxi para a casa, ela foi brutalmente assassinada, covardemente arremessada pra fora de um carro em movimento. O suspeito primordial do crime foi o Dix, né. Aí, já viu...

Suspeito de cometer um crime, Dix faz piadas e se mostra indiferente à trágica morte da jovem. Ele culpa sua experiência (em contos de crime e mistério) pelas mórbidas brincadeiras em relação ao assassinato em questão e são essas experiências a chave para se TENTAR entender a mente do escritor. “Já matei dúzias de pessoas... nos filmes”, ele diz, sem perceber que com essa única frase Dix enterra qualquer oportunidade de argumentação sobre seu sucesso profissional, pois, apesar do tempo ter se passado o suficiente para que ele pudesse ter dado fim a dúzias e mais dúzias de vidas... nos filmes, ele ainda “não é ninguém”. Ninguém. Vítima daquilo que o cerca, Dix há muito ultrapassou a Travessa da última gargalhada, e sem rir, endureceu e endureceu, até que a maldição de seu próprio nome caísse sobre si, Dix Steele é agora duro como aço e, o twist que esse metal, a pressão (dos policiais) e a desconfiança (da namorada) criam dão origem a um licor amargo e rude, que o homem bebe com prazer, na sua busca por um sentido à sua agora fracassada vida.

Todo mundo começou a desconfiar dele, a acusar o pobre coitado e aí ele fica violento mesmo, fazer o que, até bateu em um cara na estrada. Só que aí, ah é, tem uma garota que ele conhece, e quer se casar com ela, mas ela não quer porque acha que foi ele que matou a menina, a Atkinson. Aí a Lauren – é a garota – tenta fugir, mas ele não deixa e quando descobre fica tão nervoso que tenta matar ela!

“Menosprezado pela fortuna e pelas pessoas, em minha solidão lamento meu desterro, e clamo aos céus com um pranto inútil. Olho pra mim mesmo e amaldiçôo meu destino.” O poema citado pelo ator fracassado Charlie Waterman continua como uma ode ao amor, mas a parte que Dix recebe é tão somente essa e, talvez, ele mesmo tenha ficado acordado apenas para ouvir a composição que foi feita pra ele. Entre “ele não é ninguém” e “você não admite”, Dix personifica o resultado da falha por conseguinte da cobrança de um homem. Dix é o pai de família que, sujo e suado, pega o ônibus de noite pra chegar em casa, comer um pedaço de carne tão sujo e suado como ele próprio, e que só tem tempo de colocar a cabeça no travesseiro pra acordar cedo no dia seguinte. É um fracassado. Um perdedor. Ainda que não admita, é um perdedor. Persiste sempre na luta por uma vida menos ordinária, mas ainda sim, é um perdedor. Afogado em ignorância e rancor, é um derrotado. Derrotado pelas pessoas. Derrotado pelo tempo. Derrotado pela vida

(mas não tem culpa disso).

Ring! O telefone toca e aí ele percebe que tá machucado a Lauren, aí ele para e vai embora, aí ela chora. É ou não é aquilo que eu chamaria de uma epopéia?