terça-feira, 23 de junho de 2009

Medos privados em lugares públicos


MEDOS PRIVADOS EM LUGARES PÚBLICOS (Coeurs), Alain Resnais

Este é um trabalho recente do cineasta francês Alain Resnais, que visto em contraste com o seu primeiro e mais elogiado trabalho, Hiroshima meu amor, parece incrivelmente simples e despretensioso. Leigo engano, pois, Medos privados em lugares públicos pode até não ter a montagem complexa e absurda dos primeiros trabalhos de Resnais, mas desafia o espectador a linearizar algo que é muito mais abstrato do que cenas de um filme: pessoas.

O filme passeia por momentos cotidianos na vida de seis parisienses que são conectados através da Teoria dos seis graus de separação, onde cogita-se que todas as pessoas do mundo estão conectadas por no máximo seis outras. É inverno na França e as pessoas parecem estar cada vez mais solitárias em uma época tida tradicionalmente como romântica e aconchegante, em pleno a cidade do amor. Esse é um efeito que pode ser sutilmente constatado ao final do filme. A sensação que se pode ter é de que a estória daquelas personagens é inerte - eles saem de um lugar inicialmente para voltar a ele no final - mas o espectador mais atento vai perceber que os frágeis laços que os unem se enfraquecem ainda mais com o decorrer da história. Nicole e Dan inicialmente são noivos em crise e terminam rompendo o relacionamento; a relação superficial e estritamente profissional de Thierry e Charlotte fica extremamente confusa e constrangedora; Gaelle inicialmente tem a ambição de apesar de seu self-hatred, encontrar alguém e ao final acaba saindo machucada de um falso relacionamento amoroso; e finalmente Lionel, garçom e ouvinte no inicio, perde o pai.

A dura peça de Resnais trata em primeira análise da solidão, mas se envereda por outros pequenos assuntos ao longo da projeção, que apesar de diferentes, são inerentes à solidão pessoal. Essa solidão assume um aspecto personificado em Medos privados em lugares públicos, como se brotasse, de tão intensa, das vidas das personagens para adquirir forma própria. É a neve e é o frio, que as afasta ou que as atraí para afastá-las ainda mais no final. Não é por menos que ao invés de uma transição em fade tradicional, Resnais intercote-a com uma visão de neve em constante queda: é o ambiente tomando forma significativa no filme, é expressionismo puro, belo e poético. O cineasta, através desse efeito, veredicta o destino de suas criações, que desde a primeira visão de uma Paris completamente desolada e tomada pela neve, estão condenados a estarem e continuarem (ainda mais) sozinhos.

Alains Resnais, que trabalha com cinema há mais 60 anos, nos gratifica com uma de suas mais belas direções em longa-metragens. São planos esteticamente simples, mas de bela substância, com constantes e precisos movimentos, que dão ritmo certo ao filme e agradam definitivamente a quem se aventura a admirar as infinitas emoções contidas em uma imagem cinematograficamente fotografada. É fantástico notar que um diretor, mesmo após décadas e décadas de trabalho não tenha perdido o toque e ainda tenha se dado ao luxo de se reinventar de forma tão evidente, como Resnais o fez. O cineasta demonstra talento e liderança ao assumir à frente de um projeto que une tão bem aspectos não apenas do cinema como arte, mas da literatura, da música e do cotidiano.

Medos privados em lugares públicos é um tratado sobre uma condição recorrente e por muitas vezes permanente da personalidade humana e age de forma popular e direta sob a mente e os olhos de quem assiste, pois utiliza-se de uma linguagem descomplicada para definir e sustentar suas intenções. Obra de mestre.

sexta-feira, 19 de junho de 2009

Terror nas trevas


TERROR NAS TREVAS (E tu vivrai nel terrore - L'aldilà), Lucio Fulci

Em Terror nas trevas, Lucio Fulci delega para si uma das características mais marcantes de Mario Bava: o filme se concentra em torno da idéia da criação de uma atmosfera única e surreal de horror.

Sob esta lógica, tudo no filme pode fazer sentido. Não é como se a lógica narrativa fosse descartada em razão desse objetivo - a criação de uma atmosfera diferenciada -, mas este requer para si um sentido próprio. É por esse motivo que parece não haver linha do tempo nem espaço físico no filme. Corpos aparecem e reaparecem em lugares, tempos e circunstâncias diferentes, apenas para fazer fluir a narrativa, aumentando o terror na mente de quem assiste, e ainda de ressaltar o ponto 'discutido' por Fulci (mais uma vez, a atmosfera). Terror nas trevas é um pesadelo coletivo, e os espectadores compartilham deste sonho orquestrado pelo diretor, juntamente com os personagens.

O filme começa em 1927, onde um pintor é brutalmente torturado e assassinado (mas não antes de dizer que o hotel no qual se encontra é uma das entradas para o inferno) por o que parecem ser aldeões revoltados. Trata-se de uma cena forte, logo no inicio, que deixa claro a forma impiedosa como todas as personagens serão tratadas ao longo do filme. Após a morte desse misterioso pintor, a narrativa dá um salto de 50 anos no tempo e começa a acompanhar aquilo que seria os momentos finais de Liza - o que mais próximo podemos chamar de protagonista. Liza herdou o já citado hotel amaldiçoado de um tio que, para quem assiste ao filme, é anônimo. A história não dá rodeios: em menos de dois minutos, assustado com uma visão macabra de dentro do hotel, um pintor cai de uma plataforma e bate a cabeça. A partir desse instante, outros personagens nos são rapidamente apresentados para jamais serem devidamente desenvolvidos. Isso porque eles são meras peças que Fulci utiliza para glamourizar o gore, manipular a narrativa e criar um espetáculo para os sentidos. Não se trata de um filme que precisa ser detalhadamente entendido, pois é simplesmente baseado numa realidade alternativa ao próprio universo 'normal' da história (uma cidade no interior dos Estados Unidos) para adquirir significados próprios, que nem sempre podem ser traduzidos em palavras. É, de fato, um pesadelo.

Lançado em 1981, Terror nas trevas não foi uma obra inovadora em nenhum aspecto, mas foi provavelmente o melhor filme do gênero e intenções utilizadas. Possui um trabalho autoral de Fulci na direção, que condensa a história em puro horror e objetividade, garante atuações aceitáveis e na dose certa para cumprir o objetivo de chocar, e trabalha de maneira inicialmente contida na criação ambiental para depois explodir com a as manifestações e eventos nos vinte minutos finais. Pode não ser o melhor trabalho de Fulci, mas com certeza tem força suficiente para figurar no topo de sua filmografia e consequentemente, entre os mais bem realizados filmes do cinema de terror italiano.

quinta-feira, 18 de junho de 2009

Sussurros ao luar


SUSSURROS AO LUAR (Gekkô no sasayaki), Akihiko Shiota

O filme de estréia de Akihiko Shiota parece não saber muito bem a que veio. É de extrema inconstância: ora a história se concentra em Hideki, o garoto vítima de um distúrbio mental, ora em Stasuki, a garota que foge de um depravado.

Essa indecisão de foco não é algo que se constata imediatamente, pois a mudança não é repentina, lógica e nem intencional (exemplo mais famoso é o de Psicose). É, na verdade, uma mudança sutil e acompanha a conveniência e oportunidade oferecidas pelo roteiro, restando como única possível conclusão para o fato a de que se trata de uma trama amadora.

Sussurros ao luar exterioriza o momento complicado de amadurecimento sexual através de um jogo sado-masoquista entre os dois personagens principais. Visto apenas sob essa ótica, trata-se sem dúvidas de um belo trabalho que contribui muito bem ao ramo do 'cinema jovem'.

Outros aspectos notáveis e pelos quais Akihiko Shiota merece ser elogiado são o som e as atuações, ambos em tons e momentos oportunos. Por diversas vezes, se tem a impressão de que os atores estão participando de uma dança, com seus movimentos leves e expontaneamente forjados. Na verdade, de fato o elenco jovem parece estar em constante movimento, em contraste com o que geralmente ocorre com o elenco adulto, sendo que todos esses gestos e deslocações, são divinamente acompanhadas pela câmera do fotógrafo Shigeru Komatsubara.

No final das contas, Sussurros ao luar é uma história semi-expressionista de amor, que possui defeitos no roteiro, por ser um trabalho precário de foco narrativo, e na direção, por ser mais longo do que poderia, mas que já demonstra certo apuro técnico por parte do diretor Shiota, por trabalhar de forma tão inusitada e criativa com um tema bastante delicado.

quarta-feira, 17 de junho de 2009

Soberba


SOBERBA (The magnificent Ambersons), Orson Welles

Era de se esperar que depois te ter lançado uma obra transgressora indicada ao Oscar de melhor filme (Cidadão Kane), Orson Welles teria carta branca para trabalhar como bem quisesse. Porém, não foi bem isso que aconteceu. Welles filmou, em 1942, Soberba, baseado no livro de Booth Tarkington. A duração original do filme seria de pouco mais de duas horas e meia, mas devido ao mau desempenho nas bilheterias, excluiu-se mais de uma hora de filme, por ordem da produtora (RKO Radio Pictures), que acreditava na recuperação do prejuizo nos primeiros dias em função deste corte.

Torna-se, portanto, inútil tecer comentários aprofundados acerca do filme, já que as intenções de primordiais de Orson Welles ficaram na sala de edição. Pode-se ver nos 86 minutos do filme hoje apenas resquícios daquilo que poderia ser um tratado sobre aristocracia e modernidade. Sem esse estudo completo, o filme tornou-se um fraco romance de absurda conveniência.

Não se pode deixar de notar, entretanto, que a megalomania de Welles se faz evidente nesse trabalho, que foi pretensioso, já que as cenas raramente são interrompidas por cortes, o que constituiu com toda a certeza um trabalho preciso de direção, fotografia e atuação.

Por fim, Soberba não é um bom filme, já que seus objetivos foram muito provavelmente sufocados em pró dos interesses financeiros do produtores. Merece ser visto por fãs do diretor, que tem interesse pessoal em sua difícil trajetória no meio cinematográfico.

segunda-feira, 15 de junho de 2009

O segredo do bosque dos sonhos


O SEGREDO DO BOSQUE DOS SONHOS (Non si sevizia un paperino), Lucio Fulci

O segredo do bosque dos sonhos é mais uma das numerosas obra-primas produzidas na década de setenta e é um dos trabalhos mais elogiados do grande diretor italiano Lucio Fulci. Um mix interessante de faroeste, thriller e filme policial, a história se concentra em misteriosos assassinatos a crianças de um pequeno e supersticioso vilarejo no interior da itália.

À época do modernismo, o contraste feito por Fulci é bastante interessante. O vilarejo é tão atrasado e fechado em sua própria cultura mística, que tem-se a impressão de se tratar de um outro universo. Com o início dos assassinatos (primeiramente, três crianças são assassinadas), pessoas de outras cidades - dentre elas jornalistas - chegam ao vilarejo (localizado na região da Sicília), e tornam-se perplexos diante da cultura supersticiosa do povo. Um assunto tratado de forma no mínimo interessante pelo filme - direção e roteiro trabalhando em conjunto, para evidenciar esse 'combate'.

O que mais se percebe no filme, apesar da boa história - que funciona não somente como crítica pertinente à época, mas especialmente como suspense mesmo -, é a direção magistral de Fulci. Com uma câmera objetiva e ágil, o diretor conseguiu empregar um ritmo maravilhoso ao filme - muito mais agradável do que os gênios italianos das décadas de 60 e 70 conseguiram ser. Lucio Fulci se dá ao luxo de inclusive flertar com o noir e com o expressionismo, dando à luz a um dos grandes filmes europeus da história.

Violência e horror nas doses certas, um orçamento médio para uma produção impecável, O segredo do bosque dos sonhos é tido como um dos grandes trabalhos de Fulci, é angustiante, veloz e sincero, tendo servido de inspiração para grandes trabalhos dos nossos dias, inclusive a cena mais famosa (a tortura de Mr. Blonde) em Cães de Aluguel (de Quentin Tarantino). Indispensável para os fãs e futuros fãs do gênero, e volto a dizer, um trabalho de direção e fotografia que devem ser invejado por quem trabalha no mundo cinematográfico.


sexta-feira, 12 de junho de 2009

Corrida sem fim



CORRIDA SEM FIM (Two-lane blacktop), Monte Hellman


Filme cult da aurora dos anos 70, Corrida sem fim embarcou na onda do movimento hippie para estabelecer o seu foco narrativo. Esse trabalho de Monte Hellman fracassou nas bilheterias e foi extremamente criticado na época, por ser um filme de ritmo lento e com feições introspectivas. Mas a verdade é que é uma obra notória sobre a juventude, e não só aquela que se auto-exaltava nas décadas de 60 e 70.
O filme MOSTRA um pequeno trecho na vida de dois jovens, conhecidos no filme apenas como The Driver e The Mechanic (o que escancara a primeira das observações de Hellman - os jovens muitas vezes não possuem identidade própria e assumem-se para si próprios personalidades pouco específicas), que passam os seus dias a disputar corridas, objetivando a sobrevivência. São dois personagens indiferentes a si, ao outro e a quem os assiste. Duas pessoas que resumem a sua existência a simplesmente viver, sem tracejar metas e objetivos. Esse aspecto imediatista também é uma observação pertinente do roteiro em relação ao espírito juvenil.
A entrada da personagem The Girl, ao invés de dar fôlego novo à história, vem para confirmar os pontos abordados até então. A garota não tem ambições, não deseja ir para lugar algum e vive pegando caronas com estranhos. Observamos aqui o desapego, outro aspecto relevante ressaltado pelo filme do Hellman.
Até que temos a chegada de GTO, um personagem mais maduro, na faixa dos trinta e cinco anos. GTO não é mais jovem e, com um contraste poético entre os três personagens narrados até então, ele possui sonhos e fala sobre eles.
GTO chega à trama para disputar uma corrida com The Driver, e se apega a essa disputa com determinação, ao contrário do que se verifica com os jovens do outro carro (um two-lane blacktop, título original do filme), que demonstram um claro descompromisso com o que se propuseram a fazer.
Corrida sem fim é um trabalho definitivo sobre uma época da história do século XX e sobre uma etapa da vida de qualquer pessoa. É um filme de beleza poética, onde os objetivos da narrativa se concentram no interior das personagens e como tal deve ser reverenciado. É uma pena que o filme se arraste tanto para provar e narrar essas observações, já que todo o trabalho poderia ter sido feito em menos tempo e com um ritmo mais aceitável. Mas é, com toda certeza, um filme que deve ser visto e estudado.

Balanço do mês - maio 2009

maio 2009

27.05 – 50. Morangos silvestres (Smultronstället, Ingmar Bergman, 1957) - 5/5
31.05 – 51. Corrida sem fim (Two-lane Blacktop, Monte Hellman, 1971) – 4/5

Balanço do mês - março 2009

março 2009

02.03 – 34. Seis mulheres para o assassino (Sei donne per l’assassino, Mario Bava, 1964) – 5/5
02.03 – 35.
Thriller – um filme cruel (Thriller – en grym film, Bo Arne Vibenius, 1974) – 2/5
05.0336. O grande Lebowski (The big Lebowski, Joel e Ethan Coen, 1998) – 5/5
06.0337. O velho e o mar (The old man and the sea, Aleksandr Petrov, 1999) – 3/5
06.03 – 38.
O exorcista (The exorcist, William Friedkin, 1973) – 4/5
07.03 – 39. Enigma do poder (New Rose Hotel, Abel Ferrara, 1998) – 3/5
07.03 – 40. Fuca alucinada (Dirty Mary crazy Lazy, John Hough, 1974) – 4/5
09.03 – 41. Cães de aluguel (Reservoir dogs, Quentin Tarantino, 1992) – 5/5
10.03 – 42. O Assassino da furadeira (The driller killer, Abel Ferrara, 1979) – 1/5
11.03 – 43. Planeta terror (Planet terror, Robert Rodriguez, 2007) – 4/5
14.03 – 44. Vício frenético (Bad lieutenant, Abel Ferrara, 1992) – 4/5
14.03 – 45. O silêncio de Lorna (Le silence de Lorna, Jean Pierre e Luc Dardenne, 2007) – 4/5
17.03 – 46.
Stanley Kubrick – imagens de uma vida (Stanley Kubrick life in pictures, Jan Harlan, 2001) – 5/5
18.03 – 47. A dama de Shangai (The lady from Shanghai, Orson Welles, 1947) – 5/5
18.03 – 48. A marca da maldade (Touch of evil, Orson Welles, 1958) – 5/5
18.03 – 49. O estranho (The stranger, Orson Welles, 1946) – 4/5